Eu prefiro ser escrava e rebelde, obrigada.
As atrizes responsáveis por Suffragette, que conta a história do movimento sufragista, responsável pela igualdade de direitos na Inglaterra falaram à Time Out sobre o filme. Todas mulheres brancas usando camisetas com a frase “eu prefiro ser rebelde do que ser escrava.”
E eu achei isso extremamente ofensivo, não apenas pelos motivos óbvios.

Primeiramente: não me leve a mal. Como uma pessoa que tem pura consciência de que não se luta uma guerra sozinha –ainda mais uma guerra como a nossa–, e que nunca realmente se importou em usar os termos “feminismo branco” e “feminismo negro” (apesar de ter sido recentemente convencida de que são dois movimentos importantes e complementares dentro do feminismo que nos faz questionar muitas coisas e reconhecer certos privilégios), é importante dizer que eu acho o movimento sufragista de uma importância imensurável para a história dos direitos femininos. Isso precisa estar bem claro nesse texto.
Mas uma coisa que também precisa estar bem clara é que não se brinca com escravidão. Mulheres desde sempre são escravas das mais diversas formas: psicológicas, sexuais e físicas, esse último se relacionando com a visão mais conhecida da palavra, no caso, as escravas africanas.
Novamente, não me leve a mal. O movimento foi historicamente branco, e, como disse a Rebeca no texto que me inspirou a escrever esse, “eu nem acho que colocar uma mulher negra no meio do elenco ia ajudar, já que ia contar uma versão fantasiosa de uma realidade: que o movimento feminista tende a ser extremamente branco, e podia acabar escondendo a realidade racista da época.” O problema é que quando se estampa a famosa frase de Emmeline Pankhurst, uma das sufragistas mais influentes –e mais uma vez obrigada Re pela informação–, para estampar uma camiseta, acaba se tocando numa ferida que ninguém deveria tocar. E eu não estou nem falando de apropriação cultural, eu estou falando de bom senso.
Como uma mulher que tem sangue escravo correndo nas veias, acredite em mim que não há, em momento nenhum, a mais remota possibilidade de que qualquer mulher negra ache esse tipo de frase minimamente decente. Você também não deveria achar. E mesmo em se tratando de um filme “feminista branco”, esse tipo de coisa deveria ser levada em consideração.
Não acredito que eu precise explicar o que a frase sugere, assim, imediatamente. Porém, para os poucos que ainda precisam desse clareamento –seja porque realmente não conseguem interpretar uma frase ou porque não estão acostumados a problematizar as coisas (parabéns, o mundo foi feito pra você!)– eu vou explicar. A frase sugere que existem dois tipos de mulheres: aquelas que se rebelam, e aquelas que são escravas. Não adianta. Eu sei que quer dizer isso, você sabe que quer dizer isso, todo mundo sabe que quer dizer isso.
Você pode dizer “mas, Duds, essa frase não diz respeito exclusivamente à escravidão das africanas, que já não era uma realidade naquela época.” E não. Realmente não era uma realidade naquela época –não na Inglaterra. É importante lembrar que enquanto a Inglaterra vivia uma Revolução Industrial o Brasil vivia os últimos anos de seu Império e os primeiros anos de sua República. Vamos lembrar que o movimento sufragista foi fundado em 1897, a Lei Áurea aqui no Brasil foi assinada em maio de 1888 e a República proclamada em novembro do ano seguinte. São 9 anos de senhores de engenho que ainda não sabiam muito bem o que fazer com seus escravos, são 9 anos que escravos não sabiam o que fazer com eles mesmos. A mulher escrava não teve muita escolha. Ela não podia escolher ser rebelde num mundo onde ela havia sido largada a sua própria sorte. Ela podia rezar e esperar pelo melhor, e muitas delas continuaram sendo escravas durante um bom tempo ainda simplesmente porque essa era a única coisa que elas conheciam, e o mundo era assustador.
Mas, de novo, você está certo ao dizer que “escrava” não quer dizer necessariamente escravas americanas. Então imagine a cena da mulher que é considerada uma escrava do lar. Ela está num relacionamento abusivo e não vê muita saída, e acaba sendo completamente submissa ao marido. Aquela mulher não tinha os vídeos da Jout Jout. Aquela mulher não tinha Spice Girls. Aquela mulher não tinha Barbara Gordon. Aquela mulher vivia no final do século 19.
É absolutamente doentio separar as mulheres corajosas das mulheres “escravas” como se fossem feijões bons e feijões ruins. É a versão do século 19 para “essa é boa pra casar, essa é boa pra pegar.”
A citação completa de Emmeline é a seguinte:
“Eu sei que mulheres, uma vez convencidas de que o que estão fazendo é certo, que a rebelião é justa, vão continuar. Não importam as dificuldades, não importam os perigos, enquanto uma mulher estiver viva para segurar a bandeira da rebelião. Eu prefiro ser uma rebelde do que uma escrava.”
Não teria sido maravilhoso se a frase utilizada para a divulgação do filme na tal sessão de fotos tivesse sido “não importam as dificuldades, não importam os perigos, enquanto uma mulher estiver viva para segurar a bandeira da rebelião”? Se você não vai tocar no sofrimento e opressão das mulheres negras –ou, se você preferir, das esposas de qualquer etnia–, é preferível que você realmente o ignore, e não esbarre em um assunto que não diz respeito a você.
Assim como a Rebeca, eu ainda vou assistir Suffragette, e vou fazer isso no cinema (se sair por aqui), batendo palmas para um movimento lindo que deu vazão a tantos outros e que foi os primeiros passos para que todas tivéssemos os direitos que temos hoje.
No entanto, se hoje eu agradeço indiretamente às sufragistas por ter o direito de escrever o que eu penso sobre qualquer assunto, eu também faço uso desse mesmo direito para questionar esse tipo de ação publicitária.
Sigo então sendo rebelde e escrava. Sejamos todas?