Não há consenso (ou motivo) para o retorno do futebol na pandemia

Duds Saldanha
5 min readApr 30, 2020
No Brasil, o velho Paca, o Estádio do Pacaembu, emprestou seu gramado histórico para um dos hospitais de campanha de São Paulo. (Foto: Agência O Globo)

Desde o final de semana do dia 15/03 que a bola não rola nos campos de futebol daqui do Brasil. Em países europeus, pelo menos um final de semana antes disso. Está tudo paralisado devido à epidemia de Covid-19, o Coronavírus.

Alguns gramados, como o do Pacaembu em São Paulo, que recentemente fez 80 anos, agora são palco de outro tipo de arte, muito maior: a dos profissionais de saúde. No Rio, o Maracanã também virou hospital de campanha; em Brasília, o Mané Garrincha.

No momento em que esse texto é escrito, os números oficiais de casos no Brasil são de 78.162 confirmados e 5.466 mortos. No mundo, os casos confirmados passam dos 3 milhões e os mortos passam os 220 mil.

E, ainda assim, estamos falando do retorno do futebol.

Algumas organizações falam sobre retorno desde o dia que foi anunciada a paralisação. Isso é normal, tanto do ponto de vista humano quanto do ponto de vista de negócios. Humano porque passa um certo senso de controle da situação, e de negócios porque também acalma investidores, patrocinadores e dá esperança aos torcedores de que tudo volte ao normal –por mais que a gente não vá ter o normal de antes.

Quando falamos em retorno, até agora, o cenário é o seguinte:

24/04: a Holanda é o primeiro país a encerrar sua temporada 2019/20, enquanto a Alemanha se diz pronta para retornar 09/05.
27/04: a Argentina, que usa um modelo de calendário baseado no europeu, é o primeiro país da América do Sul a encerrar a temporada.
28/04: no Brasil, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) anunciou uma sugestão de retorno do futebol no país, o dia 17/05. Lembra da Alemanha? Começou a perceber que o retorno no dia 09/05 não é mais tão viável. Para a Inglaterra, a projeção é do retorno no dia 06/06. A Itália prevê os treinos sendo retomados dia 18/05.
29/04: a França é o segundo país da Europa a cancelar sua temporada 2019/20, enquanto a Espanha prevê o retorno sem público no dia 05/06.

Tem muita coisa envolvida no cancelamento de uma competição, desde pagamentos a funcionários dos clubes e jogadores até pagamento feito pelas emissoras (tanto pagas quanto abertas) aos clubes pelos direitos de transmissão, passando até mesmo por pagamentos das federações aos clubes –no Brasil, por exemplo, a CBF repassou uma ajuda de custo aos clubes femininos, ainda que esse dinheiro não tenha chegado às jogadoras por falta de fiscalização.

O que eu quero dizer aqui é simples: a suspensão do futebol não envolve apenas uma pessoa dizendo que está suspenso e pronto. Há um plano de marketing, há folhas de pagamento, há uma série de coisas. E na mesma lógica, o retorno do futebol, também não envolve uma pessoa só dizendo que vai voltar “dia tal”. É muito maior que isso, e do jeito que estamos hoje, é inviável.

Muito embora haja conversa com relação à datas, não existe um consenso mundial. Não existe nem um consenso dentro dos próprios países.

Enquanto a CBF sugere data para retorno dos treinos e para retomada de campeonatos estaduais, a entidade reconhece que os estados não possuem nem o mesmo cenário de epidemia –o Campeonato Paulista, por exemplo, não poderia voltar tão cedo, seria uma irresponsabilidade. O Raí, diretor executivo de futebol do São Paulo, e o gerente executivo Alexandre Pássaro disseram em entrevista ao GloboEsporte.com que o posicionamento do clube é de que se volte a treinar gradativamente, mas não a jogar.

Na Itália, mesmo a Federação Italiana prevendo retorno e querendo terminar os campeonatos normalmente, o Ministro do Esporte e da Juventude italiano se mostrou mais a favor de seguir o caminho da França e cancelar de vez a temporada. Segundo Gabriele Gravina, presidente da Federação, o encerramento do campeonato seria “a morte do futebol italiano.” O técnico da Roma, disse que com o futebol “poderíamos ajudar as pessoas a serem um pouco mais felizes.

Na Inglaterra, enquanto não se discute encerramento do campeonato, a polícia que é responsável especificamente pela segurança de estádios disse que vai prender os torcedores que não respeitarem o isolamento social em dias de jogos, ou que, por ventura do encerramento do campeonato, saiam às ruas para comemorar o “título”.

E mesmo na França, que já decretou encerramento da temporada, o presidente do Lyon elaborou um documento defendendo um formato que possibilitaria o campeonato de chegar ao final com jogos acontecendo. A solução proposta pelo presidente defende que “o futebol precisa ser inovador e não ceder a uma decisão administrativa injusta que vai criar um risco legal.” Ele também diz que o caminho para lidar com essa situação é sugerir novos formatos e não o cancelamento.

Eu pergunto ao presidente da Federação Italiana: como fica então Dybala, que segue com diagnóstico positivo para Covid-19 há 6 semanas, mesmo assintomático, e que joga na Juventus, clube italiano? E os outros jogadores em grupo de risco? Pergunto ao presidente do Lyon: é uma decisão injusta querer impedir que jogadores sejam expostos a um perigo que os faça virar estatística junto aos já mais de 24 mil franceses mortos no país?

Por fim, trazendo para dentro de casa, eu pergunto à CBF: de onde vão vir as máscaras que os funcionários do clube terão que usar e trocar de 2 em 2 horas todos os dias? Os testes de Covid-19 comprados pelos clubes para testar os funcionários do departamento de futebol, e que o Palmeiras já antecipou, são mais importantes no CT do Palmeiras ou nos hospitais públicos e privados? É mais importante que o Mané Garrincha, o Maracanã e o Pacaembu continuem como hospitais de campanha ou abriguem jogos sem público para terminar um campeonato estadual que, nesse ponto, já não vale mais nada?

Deveria ser óbvio que o retorno do futebol agora é cruel com os jogadores que passarão a ser expostos diariamente ao vírus correndo o risco de levá-lo pra casa e para suas famílias, pelo simples ponto de dar um último suspiro a um calendário que não vai se sustentar e para passar tranquilidade a patrocinadores e emissoras? Gary Neville, ex-jogador inglês, reforçou o discurso da Comissão Médica da Fifa de que “o futebol não deveria ser retomado antes de setembro”, e que “não haveria futebol por meses se a decisão não fosse econômica.

Essa jornalista está com Neville. Com todo respeito: a economia que lute, e seja criativa.

Em um país onde a curva do vírus só aumenta quando deveria estar próxima ao pico e dando sinais ainda que mínimos de diminuição, e em um mundo que começou só agora a respirar fundo depois da primeira leva de um surto que pode ter uma segunda ou até uma terceira leva enquanto uma vacina não é desenvolvida, cogitar o retorno do futebol é absurdo.

O tempo agora é para discutir mudança de calendário (no caso da possibilidade do Brasil adotar o calendário europeu), adaptação, estratégias de marketing a longo prazo, acordos futuros e reprises de jogos saudosos e antigos (fica inclusive o convite para assistir à goleada de 5x0 da Seleção Brasileira Feminina nos Estados Unidos no Pan 2007 que a Globo reexibirá no dia 10 de maio).

Olhando para o número de mais de 3 milhões de infectados no mundo, é bom que os estádios de futebol permaneçam como estão agora: vazios, mas cheios da esperança de que jogadores e torcida se reencontrem, juntas, quando der.

Que o Pacaembu possa brilhar apenas como hospital de campanha.

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Duds Saldanha

27 anos. Brasileira. Criadora de conteúdo, ilustradora e blogueira de comportamento e de esporte. http://linktr.ee/ddsaldanha